Numa visita feita a uma fazenda chamada Muinge, junto ao Rio Longa, perto do Calulo, tive a oportunidade de ser testemunha de uma aventura, que mais tarde acabou em morte de duas pessoas, mãe e filho mais novo.
Passo a relatar: fui acompanhar um amigo, José Araújo, filho de um grande amigo de meu pai, que teve a 2.ª licença de alvará de talhos em Angola – Luanda, junto ao Banco de Angola e perto também do que viria a ser o edifício do BCA, onde estava instalada a Cabinda Gulf. Ele tinha 4 talhos o que significava, ter eu o privilégio de comer bifes de lombinho de vitela que eu próprio confeccionava, acompanhados por um arroz branco, que foi do pouco que aprendi, como cozinheiro. Além da minha facilidade em ser abastecido, sendo a carne um artigo de luxo e escasso, o meu amigo estabeleceu contactos privilegiados com membros do governo, através das respectivas companheiras, nomeadamente o ministro da defesa Iko Carreira, que lhe permitiam ter artigos só acessíveis pelo corpo diplomático, como um piano, aparelhagem de última geração, um Ford Camaro Z 28 (novo), que cheguei a conduzir na Ilha de Luanda, além de um Ford Mustang, mais antigo.
Na altura ainda tentei convencer o Joaquim Graça, a arranjar-nos 3 camiões para se ir buscar gado para abate à referida fazenda. Ele devido à conjuntura difícil, não conseguiu arranjar qualquer viatura. O problema foi resolvido. Viajámos num “carocha”, todo o terreno e lá chegámos à fazenda, após atravessarmos umas 4 ou 5 cancelas, pois a propriedade parecia um kibutz, vedada, em coroas mais ou menos concêntricas. Chegámos quase à noite, mas deu para ver ainda uma casa tipo colonial com um alpendre em todo o comprimento, com troféus de caça pendurados e uma vivenda do mais moderno e confortável que era possível imaginar em pleno mato!
O proprietário, Franz Hubert Bickmann, tinha ido para Angola com os pais com 2 anos de idade e na altura tinha 52 anos. Homem magro e alto, produtor de café, criador de gado, transformador de produtos lácteos, como queijo e manteiga, além de produtos de salsicharia. A fazenda tinha mais de 8 kms de extensão e era atravessada pelo rio Longa, o que lhe permitia também ter peixe! Era aquela distância de Luanda, quase auto-suficiente! Dizia-se que o Mabílio de Albuquerque estava 29 dias na capital, nas boites e 1 dia na fazenda e o Franz, era o contrário. Só ia a Luanda para trazer arroz e açúcar e alguns outros géneros alimentares e medicamentos para a família e trabalhadores.
O senhor tinha 3 filhos, um rapaz mais velho, que tinha ido para a Guérin, no Brasil, um mais novo, o benjamim e seguidor do empreendedorismo do pai, que havia tirado o curso de agro-pecuária na Rodésia, uma filha mais nova, que estudava na Alemanha e a mulher. Na fazenda vivia ele a mulher e o filho mais novo, à data da nossa visita.
O filho tinha ido ao Calulo para se abastecer de gasóleo, em tambores de 200 litros, tendo sido acompanhado por uma portuguesa, ligada aos laboratórios BASF.
Estávamos já noite à espera para jantar e eles não apareciam. Foi quando ele decidiu pôr-se a caminho numa Auflinger, que parecia um Unimog em miniatura, por aquelas picadas fora. Acompanhámo-lo e eis que chegados a um posto de controlo das OPA (milícias armadas, incluindo miúdos de 11 – 12 anos), nos disseram que eles já lá tinham estado carregados com os tambores de gasóleo, mas como não tinham deixado nenhum com eles, tinham regressado ao Calulo, para o assunto ser decidido pelas autoridades locais! Ele Franz falava em plena noite como um grande soba, em umbundo, que dominava, insultando aquele pessoal armado, mas sem qualquer medo! Toda uma comunidade dependia dele, a nível de abastecimentos e protecção na saúde. Era o maior empregador da zona e convivia com eles com uma autoridade, que eu jamais vira na minha vida.
Entretanto preparávamo-nos para seguir para o Calulo, quando eles aparecem o filho e a companheira, com a GMC e os tambores de gasóleo, tal como tinham vindo da primeira vez. Estabeleceu-se uma grande discussão de novo, mas eles acataram a autoridade do “mais velho” Franz e lá nos deixaram regressar à fazenda.
Ouvimos todo o relato à hora do jantar e lá fomos dormir descansados. No dia seguinte, o pequeno-almoço mais parecia um baptizado, com tudo, como é costume à alemã. Nem em turismo de habitação em Dusseldorf, em 1989, vi tal fartura de mesa!
Passado o repasto, lá fomos assistir à carga do gado nos camiões, com o filho do Sr. Franz, através de uma manga e de uma rampa e com um bastão eléctrico a conduzir o gado.
Regressámos a Luanda e meses mais tarde soubemos da trágica notícia. Talvez resultado daquela noite de confrontação verbal, um grupo de marginais, foi à fazenda e assassinou a mãe e o filho, tendo o Pai escapado por não estar presente naquela hora fatídica. Foi-nos depois contado que quando regressou à fazenda o Sr Franz, moveu uma perseguição aos assassinos, mas que não resultou em pleno. Ainda terá ferido um dos foragidos, que seriam 3. De notar que o Sr. Franz, além de fazendeiro, era também caçador, com imensos troféus, desde peles de leopardos, a patas de elefante e a cabeças de outra caça grossa.
Passados poucos meses, os bandidos foram capturados, foram postos numa praça pública do Calulo e foram fuzilados, em presença do Sr. Franz.
Entretanto foi para a Alemanha, ter com a filha e recuperar psicologicamente. Teve entrevistas para a televisão e relato dos acontecimentos na revista Stern e mais tarde voltou a casar, regressando a Angola e ficou com uma casa, tipo palacete, no bairro Miramar, perto do cemitério velho. O Agostinho Neto, o Iko Carreira, davam-lhe todas as mordomias possíveis, para o cativar, pois ele era um elemento fundamental, na agro-pecuária da região, pois apesar de ser um auto-didacta, sabia mais que muitos catedráticos. Tudo o que tinha estava investido em Angola. A casa tipo palacete da “casa branca”, ficou mais tarde para o ministro da defesa Iko Carreira. Deram-lhe bastante dinheiro para transferir para a Alemanha e não sei mais o que se terá passado, pois regressei a Portugal, em Dezembro de 1978.
Um pormenor que não deixa de ser relevante. Já na altura ele tinha adoptado uma criança negra, com 2 anos de idade, a que deu o nome de Maxmiliem!!!!
Um abraço a todos e até à proxima crónica (regresso a Portugal)
Visitantes do "Blog" do Grave!
ResponderEliminarComo vocês estão vendo, "não dói nada" publicar estes episódios da nossa vida, nem é necessário fazer nenhum curso, como o sempre modesto Cabral falou que ia fazer!A gente não é escritor, mas, e falo por mim, comecei a ler esta crónica, e terminei num "zás-trás"!Sempre pensei que o Cabral tinha tido uma vida mansa, sem sobressaltos, sentado num escritório...como a gente se engana!Porquê não nos darmos um pouco a conhecer aos nossos amigos?
Vai em frente, Cabral, Morais Cunha, Grave, Martinhóstomo, e todos os outros que, agora envergonhados, quando começarem a bater letra, não vão querer mais parar!E, Cabral, pára de fazer "cú doce"! Tú escreve é bem demais!!
Abraço de Urso
Devagar e Sempre
LM
A vida não vale nada e hoje em dia, sem ser só em Angola, mata-se por prazer, com total desprezo pela vida humana!
ResponderEliminarOnde vamos parar?
Jorge, o Grave
Fico sensibilizado com esta história....mais ainda por se tratar do meu avô...Anton Bickmann
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